INTRODUÇÃO
Sentenças panqueca são estruturas de cópula em que não há concordância entre o sujeito e o adjetivo predicativo. Esse tipo sentencial existe em várias línguas e se caracteriza por duas características interrelacionadas: a) desacordo morfossintático entre sujeito e predicado; b) leitura de evento para o sujeito.
A sentença em (1) exemplifica esse tipo sentencial no português brasileiro (PB) e suas duas características interrelacionadas. Em relação ao desacordo morfossintático, notamos que o sujeito crianças exibe traços-phi de gênero feminino e número plural e o adjetivo predicativo não possui os mesmos traços, apresentando traços de gênero masculino e número singular.
(1) Crianças é divertido1.
Como já bastante discutido na literatura, sentenças como (1) sempre apresentam uma leitura de situação para o seu sujeito. Em (1), várias leituras são possíveis para o sujeito. Entre elas, a de que brincar com crianças é divertido. A comparação de (1) com sentenças copulares com concordância regular, como (2), deixa evidente a presença da leitura de situação para sentenças como (1) e seu banimento em sentenças como (2).Em (2), os valores de gênero (feminino) e número (plural) para o sujeito e para o adjetivo predicativo são coincidentes.
(2) Crianças são divertidas.
Em (2), o sintagma crianças na posição de sujeito só pode ter uma leitura de indivíduo, isto é, são indivíduos específicos que têm a propriedade de serem divertidos. Como já vimos, não é essa a leitura que temos para o sintagma crianças, em (1). Naquela primeira sentença, o sintagma crianças é interpretado como parte integrante de um evento. É possível, inclusive, que as crianças que participam desse evento não sejam divertidas.
A presença da leitura de situação em (1) fica mais clara ao analisarmos algumas paráfrases possíveis com verbos infinitivos, como em (3) a (5). Como fica evidente pelas partes sublinhadas abaixo, essas paráfrases mantêm uma certa fidelidade com (1), sendo as palavras de (1) um subgrupo das palavras em (3)-(5). Autores como Faarlund (1977) e Martin (1975), que notaram essa afinidade entre sentenças panqueca e as suas paráfrases correspondentes, assumiram que haveria um verbo implícito nas sentenças em (1), o qual seria responsável pela leitura de evento. Nessa perspectiva, as diferentes leituras de (1) corresponderiam a derivações diferentes, algumas delas exemplificadas em (3)-(5).
(3) Ter crianças é divertido.
(4) Cuidar de crianças é divertido.
(5) Brincar com crianças é divertido.
Em contraste, essas paráfrases são impossíveis para sentenças copulares com concordância regular, como demonstrado em (6).
(6) *Ter/ *cuidar de/ *brincar com crianças são divertidas.
Tendo em vista as características que separam as sentenças panqueca de sentenças copulares com concordância regular, uma sentença como (7) é ambígua e pode corresponder tanto a sentenças panqueca quanto a sentenças de concordância regular.
(7) Menino é divertido.
Se menino, na posição de sujeito, fizer parte de uma leitura eventiva, há desacordo de gênero, ainda que não tão evidente como no exemplo em (1). Na interpretação de sentença panqueca, menino, em (7), está especificado para o gênero masculino e o número singular, enquanto o adjetivo predicativo está especificado para gênero neutro e número singular. No PB, gênero masculino e gênero neutro podem ser associados aos mesmos expoentes fonológicos, mesmo que sejam categorias diferentes (cf. Câmara Junior, 1970). De qualquer forma, a leitura de evento, presente em (7), deixa claro o desacordo morfossintático, que é um dos diagnósticos de sentenças panqueca.
Se tanto menino quanto divertido estiverem flexionados para gênero masculino, a leitura que se tem é de que a entidade menino é divertida. Uma sentença como (7) também nos mostra a importância do traço de gênero para a interpretação de sentenças panqueca. Esse traço é mais importante que o traço de número, que varia independentemente no PB (cf. Duek, 2012 para uma discussão do traço de gênero em sentenças panqueca).
Além dessas, algumas características específicas das sentenças panquecas são as restrições que elas apresentam quanto ao sujeito e ao adjetivo predicativo que podem estar presentes nelas. Conforme analisado por De Conto (2018), os adjetivos predicativos que fazem parte das sentenças panquecas são, necessariamente, predicados avaliativos, como (8) e (9) mostram2.
(8) Mulher é complicado.
(9) *Mulher é vaidoso.
Quanto ao sujeito dessas construções, somente nominais nus e alguns sintagmas quantificados podem ser licenciados, como mostrado em (10). Sintagmas nominais definidos e quantificadores altos não são licenciados, vide exemplos em (11)3.
(10) a. Quinze crianças/ Uma criança/Muita criança é complicado.
b. Criança/crianças é complicado.
(11) a. *A criança é complicado.
b. *Toda criança/ Cada criança é complicado.
Há diversas propostas para explicar a estrutura sintática das sentenças panqueca no português brasileiro e o motivo da sua falta de concordância, como as de Duek (2012), Foltran & Rodrigues (2013, 2015) e D. Carvalho (2016). No entanto, conforme afirma De Conto (2018), nenhum desses trabalhos aborda de forma satisfatória a leitura de situação do sujeito dessas sentenças. De acordo com a autora, "Duek (2012) negligencia a leitura de situação; Rodrigues e Foltran (2015) a delimitam muito vagamente; e D. Carvalho (2016) também releva a discussão." (De Conto, 2018, p. 48)
Neste trabalho, também nos interessamos sobre a relação entre a estrutura do sujeito e a leitura de situação. Para nós, os sujeitos dessas sentenças, na verdade, são nominais pseudoincorporados a uma estrutura verbal abstrata. Essa análise já foi feita para línguas escandinavas, as quais têm características diferentes do PB, como não aceitarem nominais nus em posições argumentais. Müller (2021), com base no contraste entre a distribuição dos nominais nus no dinamarquês e a sua aceitabilidade geral em sentenças panquecas, argumenta que o nominal nu está incorporado a uma predicação abstrata em sentenças panqueca. Embora a estrutura de sentenças panqueca varie entre as línguas (cf. Martin et al, 2020), a estrutura de sentenças panquecas em línguas escandinavas e no PB parece ser exatamente a mesma, uma vez que, com argumentos diferentes, chegamos à mesma análise de Müller (2021).
Para argumentar a favor da hipótese de que o nome em aparente posição de sujeito está pseudoincorporado a uma predicação abstrata, este artigo tem a seguinte organização. Na seção 2, discutimos algumas características da leitura de evento em sentenças panqueca. Na seção 2.1, discutimos sobre as paráfrases de infinitivo e os motivos pelos quais elas foram rejeitadas na literatura. Na seção 2.2, discutimos a natureza da paráfrase em sentenças panqueca, mostrando que, embora as paráfrases sejam bastante permissivas, os verbos permitidos fazem parte de classes definidas. Com base nisso, assumimos, tal como Josefsson (2009), que há uma eventualidade abstrata nesses dados. A seção 2.3 testa algumas modificações possíveis no (suposto) sujeito de sentenças panqueca, mostrando que algumas modificações verbais são licenciadas. Elas não deveriam ser possíveis se não houvesse, nessas sentenças, uma predicação verbal. Na seção 3, examinamos algumas características da incorporação, com base em Mithun (1984) e Massan (2001) e concluímos que os sujeitos de sentenças panqueca possuem características centrais de pseudoincorporação. Essas características, inclusive, distinguem os sujeitos de sentenças panqueca de sujeitos com nomes nu em geral, licenciados majoritariamente em sentenças genéricas no PB. A seção 4 conclui o texto.
1. COMO NASCE A LEITURA DE EVENTO EM SENTENÇAS PANQUECA?
1.1 Sentenças panqueca e infinitivo
Rodrigues e Foltran (2015) discutem diferentes hipóteses existentes na literatura sobre o mecanismo responsável para a leitura de evento de sentenças panqueca. Ao final da discussão, as autoras concluem que o fator responsável pela falta de concordância entre o sujeito e o predicado nessas construções é a ausência de traços-phi no NP em posição de sujeito dessas sentenças.
Uma abordagem rejeitada pelas autoras é a de que o sujeito dessas sentenças seja uma oração infinitiva elíptica, proposta por Faarlund (1977) para o norueguês e por Martin (1975) para o português. Apesar de essas hipóteses também apresentarem alguns problemas, conforme Rodrigues e Foltran exemplificam, acreditamos que elas podem servir como ponto de partida para a explicação de uma questão que é pouco discutida na abordagem das autoras: a origem da leitura de situação.
Martin (1975) parte da discussão sobre a concordância em sentenças panqueca para analisar a questão do gênero gramatical em busca de relativizar o pressuposto de que o adjetivo predicativo sempre concorda em gênero e em número com o substantivo predicado. Para isso, o autor se vale dos seguintes exemplos:
(12) Um sorvete seria ótimo. (Martin, 1975, p.1)
(13) Uma cerveja seria ótimo. (Martin, 1975, p.1)
A partir da análise dos exemplos, Martin afirma que a leitura das sentenças está diretamente ligada à sua aplicação em um contexto:
Com efeito, que é que, de acordo com (12) [nossa numeração / as autoras], seria ótimo? Para responder a esta pergunta, vemo-nos forçados a imaginar um contexto em que possamos situar essa oração. Ela poderia, por exemplo, ser resposta à pergunta "Que podemos usar para apagar incêndio no cesto de papéis?" ou ainda "Que que vocês vão tomar?" Conforme o contexto, então, (13) seria uma forma abreviada de Usarmos uma cerveja para apagar o incêndio no cesto de papéis seria ótimo ou de Tomarmos uma cerveja seria ótimo
(Martin, 1975, p. 2, numeração adaptada)
Nesse sentido, o autor defende que as sentenças em (12) e (13) — que podemos entender como formas de sentenças panqueca — seriam formas abreviadas de outras sentenças, e que os seus sujeitos são objetos de verbos no infinitivo que são omitidos e ficam subentendidos no contexto. Sendo assim, o autor propõe que o adjetivo predicativo, nestas sentenças, aparece em sua forma não marcada, visto que concorda com o verbo no infinitivo que estaria subentendido e não com o sintagma nominal que está explícito na construção.
Ao analisar essa proposta, Rodrigues e Foltran (2015) apresentam argumentos relevantes e que não podem ser desconsiderados. Para as autoras, ao considerar que sentenças como Uma cerveja seria ótimo seriam formas simplificadas de sentenças como Tomarmos uma cerveja seria ótimo são desconsiderados alguns pontos importantes.
Primeiramente, a restrição do sujeito das sentenças panquecas a nominais nus ou quantificados é desconsiderada (cf. 14a), visto que verbos não apresentam nenhuma limitação quanto à presença de sintagmas definidos em sua posição de complemento, como pode ser visto em (14b):
(14) a. *Minha mulher é divertido. (Rodrigues e Foltran, 2015, p.135)
b. Beijar minha mulher é divertido. (Rodrigues e Foltran, 2015, p.135)
Um segundo argumento é que, caso o sujeito das sentenças panqueca fosse parte de um infinitivo oculto, essas construções deveriam apresentar a mesma distribuição de uma sentença infinitiva, o que também não ocorre. Em (15), vemos que o sujeito de sentenças panqueca não pode ocorrer posposto ao predicativo, com entonação neutra. Em (16), vemos que não há essa restrição no caso de sujeitos oracionais com infinitivos. Eles podem ocorrer tanto antepostos ao verbo, como em (16a), quanto pospostos, como em (16b).
(15) *É divertido crianças pequenas4. (Rodrigues & Foltran, 2015, p.135)
(16) a. Cuidar de crianças pequenas é divertido. (Rodrigues & Foltran, 2015, p.135)
b. É divertido cuidar de crianças pequenas. (Rodrigues & Foltran, 2015, p.135)
A partir disso, elas assumem que o sujeito dessas sentenças são sintagmas nominais menores do que um DP, que podem conter alguns elementos quantificados (Small Nominals para Pereltsvaig (2006)). Por conta da falta de projeções ligadas à referencialidade, small nominals não podem fazer referências a indivíduos. Conforme analisa Pereltsvaig (2006) para o russo, small nominals podem ser alguns tipos de QPs ou NPs e podem estar localizados em posições argumentais de sujeito ou de objeto, mas, diferentemente dos DPs, os small nominals não podem apresentar referências a indivíduos. Esses sintagmas estão presentes no sujeito de algumas sentenças específicas do russo como (18), que não apresentam a concordância plural do verbo como em (17), quando o sujeito possui mais estrutura funcional, ainda que os sintagmas sujeitos em (17) e (18) pareçam formalmente idênticos.
(17) Russo
| V | ètom | fil'me | igrali | pjat' | izvestnyx | aktërov |
| in | this | film | played.PL | five | famous | actors |
'Cinco atores famosos atuaram neste filme.'
Fonte: Pereltsvaig (2006, p.438)
(18) Russo
| V | ètom | fil'me | igralo | pjat' | izvestnyx | aktërov |
| in | this | film | played.NEUT | five | famous | actors |
'Cinco atores famosos atuaram neste filme.'
Fonte: Pereltsvaig (2006, p.439)
Além da ausência da referência individual e do não desencadeamento da concordância, existem outras evidências sintáticas que corroboram a hipótese de que esses sintagmas seriam menores que um DP, como a incompatibilidade com adjetivos específicos, a ausência de interpretação partitiva, o fato de eles apresentarem apenas um escopo restrito, de não serem capazes de controlar PRO, de não serem antecedentes de anáforas reflexivas ou recíprocas, além de não poderem ser substituídos pelos mesmos pronomes que os DPs, como os pronomes pessoais.
Ao defender que o sujeito das sentenças panqueca seriam small nominals, Foltran & Rodrigues (2015) recuperam algumas das características da discussão de Pereltsvaig, levando em conta as propriedades das sentenças panqueca do português.
Uma primeira semelhança notória é que a falta de concordância entre sujeito e adjetivo predicativo nas sentenças panqueca tem um paralelo nas sentenças com small nominals em posição de sujeito no russo, como exemplificado em (18). Nos dois casos, os nominais não parecem ter as projeções funcionais relevantes para desencadear a concordância.
Sentenças com small nominals na posição de sujeito não podem ser antecedentes para anafóras, assim como o sujeito de sentenças panqueca em (19). Por não terem D tal como os small nominals, o sujeito de sentenças panqueca não pode ser substituído por pronomes pessoais, como vemos em (20).
(19) *Mulher é complicado para ela mesma. (Rodrigues & Foltran, 2015, p.133)
(20) *Ela é complicado. (Rodrigues & Foltran, 2015, p.133)
Ainda, tal como small nominals, o sujeito das sentenças panqueca não pode ser modificado por adjetivos ou elementos que denotem especificidade como certas e específicas, tal como mostrado em (21) e (22).
(21) *Certas crianças é divertido.
(22) *Criança específica é divertido.
A agramaticalidade de (21), em particular, não pode ser tomada como um indício de que o sujeito das sentenças panqueca não aceita elementos prenominais em geral, já que muita, antecedendo criança, é possível em (23). Da mesma forma, a agramaticalidade de (22) não significa impossibilidade de modificação adjetival de um nome de forma geral, já que pequenas é possível em (24). Portanto, os dados em (21) e (22) exemplificam a falta de especificidade dos sujeitos das sentenças panquecas.
(23) Muita criança é divertido.
(24) Crianças pequenas é divertido.
Na perspectiva de Rodrigues e Foltran (2015), a chamada falta de concordância em sentenças panqueca viria pela falta de D, que introduz os traços responsáveis pela concordância externa ao sintagma (chamados de traços index em Pereltsvaig (2006)). Ainda sob essa perspectiva, small nominals apresentam traços responsáveis pela concordância interna ao sintagma (traços concord), responsáveis pelo licenciamento de alguns adjetivos, como pequenas, em (24), mas não os traços relevantes para a concordância com o predicado.
Assumindo que esses sujeitos sejam small nominals, Rodrigues e Foltran (2015) reconhecem que não há uma explicação para o motivo da interpretação de que esse sujeito faça parte de um evento. Apesar de concordarmos com as autoras sobre a impossibilidade de os sujeitos das sentenças panqueca seriam abreviações de sentenças infinitivas, sobretudo em razão dos motivos destacados por Rodrigues e Foltran (2015), acreditamos que a possibilidade de haver uma estrutura verbal no sujeito dessas sentenças é a explicação mais próxima para a presença dessa leitura de situação nessas construções. Além disso, caso haja uma estrutura verbal na posição de sujeito, haveria outra explicação para a ausência de concordância de gênero em sentenças panqueca, visto que, quando concordam com sintagmas verbais, predicados permanecem em sua forma neutra. É esta possibilidade que desejamos explorar neste artigo.
Na seção 2.2, discutimos um pouco a natureza da paráfrase em sentenças panqueca, mostrando que não é possível a paráfrase com qualquer eventualidade. A eventualidade deve ter características específicas. Para nós, isso pode ser tomado como evidência da presença de um verbo abstrato, que licencia leituras contextuais compatíveis com sua estrutura, uma hipótese já presente em Josefsson (2009). Além disso, na seção 2.3, mostramos que advérbios verbais são licenciados no sujeito de sentenças panqueca, algo também atestado por Müller (2021) para o dinamarquês. Isso não poderia ser explicado se não houvesse aí uma estrutura verbal.
1.2 A natureza da paráfrase
Nas publicações sobre sentenças panqueca, percebemos que a paráfrase eventiva feita com esse tipo de sentença geralmente envolve o verbo lidar (com). A generalidade dessa paráfrase nos leva a pensar se haveria paráfrases impossíveis para sentenças panqueca. Se há paráfrases impossíveis, significa que há um elemento estrutural regulando as paráfrases possíveis. Para nós, esse elemento estrutural é uma predicação abstrata que é compatível com muitos verbos, mas não todos, como veremos a seguir.
Nesta seção, fazemos paráfrases usando classes verbais bem amplas escolhendo alguns verbos representativos que sejam compatíveis com sentenças panqueca. Levemos em conta, por exemplo, o verbo chorar, um verbo de atividade, usado nos contextos abaixo.
(25) Contexto: Júlia estava triste, mas ela não gosta de chorar na frente de seus filhos.
A diz: Crianças é complicado.
Interpretações possíveis: chorar com crianças/ chorar na frente de crianças é complicado.
Há duas características dignas de nota no exemplo em (25). Primeiramente, para que o sujeito de uma sentença panqueca tenha uma interpretação de eventualidade, não é necessário que haja um antecedente linguístico. Basta somente que haja uma eventualidade compatível no contexto, como no contexto em que Júlia aparece chorando, mas ninguém menciona o verbo chorar. Isso levou De Conto et al. (2022) a afirmar que a interpretação de evento nessas sentenças vem de um mecanismo semelhante à interpretação de uma anáfora profunda (Hankamer & Sag, 1976), que também não precisa de um antecedente linguístico.
Em segundo lugar, a párafrase pode ser adequada, mesmo que o sujeito de sentenças panqueca tenha uma relação "frouxa" com o verbo da paráfrase. Tomemos as paráfrases possíveis em (25) para exemplificar o que seria essa relação "frouxa". Os sintagmas com crianças e na frente de crianças são partes de adjuntos do verbo chorar. Esse verbo não toma, nos exemplos em análise ou de forma geral, crianças como um complemento. Nos contextos em que o verbo chorar admite um objeto, como em chorei um rio de lágrimas, o objeto é inanimado, não preposicionado e tem características de um objeto cognato, especificando a substância do choro.
Ou seja, a párafrase adequada mostra que a semântica de chorar é compatível com a estrutura eventiva que se encontra nessa oração, mas que não podemos afirmar que haja, em uma oração como criança é complicado, em (25), um verbo chorar encoberto. Do contrário, teríamos um caso de elipse verbal completamente anômalo, em que omitimos o verbo e parte de um constituinte preposicionado em uma posição de adjunto (~~[chorar na frente das]~~ crianças é complicado). Essa não é uma característica somente desse exemplo. Vejamos a compatibilidade do verbo malhar com um caso de sentença panqueca.
(26) Contexto: Na academia tem dois homens malhando, os filhos deles chegam no meio do treino, eles param e passam a dar atenção para as crianças.
— Crianças é perigoso.
Interpretação impossível: *(malhar) crianças é perigoso
Interpretação possível: (malhar com) crianças é perigoso.
Aqui, novamente, a interpretação lícita envolve crianças como parte de um adjunto de malhar. Como não é possível fazer elisão de um constituinte e meio (malhar e o núcleo do sintagma preposicional), nesse exemplo também recuperamos a interpretação relevante porque ela é compatível com a interpretação da estrutura eventiva nessa oração, sem que haja um alinhamento entre as características de c- e s-seleção de malhar e do verbo em sentenças panqueca.
Em suma, esses exemplos são ilustrativos de paráfrases bem-sucedidas, mas também mostram que as situações compatíveis com o sujeito de sentenças panquecas são licenciados por uma compatibilidade semântico-discursiva, não gramatical5.
Passemos, agora, a outras classes de verbo, que não são licenciados como paráfrases de sentenças panqueca, como os verbos meterológicos. Nos casos em (27) e (28), os verbos usados são também verbos de atividade, como chorar e malhar mas as paráfrases deixam de ser possíveis.
(27) Contexto: Eu odeio quando chove porque não posso usar guarda-chuva por ter uma doença congênita de alergia à água. Meu marido, vendo minha aflição, tenta me acalmar. Ele diz: "Água é complicado, mas logo para".
Interpretação impossível: ?*chover água é complicado, mas logo para.
Interpretação possível (entre outras possíveis): se molhar com a água é complicado.
(28) a. Júlia se mudou para o Chile, ela prefere o clima de lá do que o do Brasil.
— Neve é bom.
Interpretação impossível: *nevar neve é bom.
Interpretação possível: estar na neve é bom.
b. Está nevando, é melhor que todos fiquem em casa, neve é perigoso.
Interpretação impossível: *nevar neve é perigoso
Interpretação possível: estar na neve é perigoso.
Verbos meteorológicos são diferentes dos verbos que testamos anteriormente em alguns fatores. Ao contrário de chorar e malhar, chover e nevar não têm argumento externo. Embora os quatro verbos possam ter complementos expressos somente em situações restritas, os complementos de chorar e malhar são menos restritos. São essas as diferenças que vamos investigar para determinar o contraste de aceitabilidade das paráfrases.
Consideremos, primeiro, a possibilidade de ter um objeto como em (29). A diferença desses exemplos para os anteriores é que um sintagma como chover neve é possível, como vemos em (30):
(29) Júlia se mudou para o Chile, ela prefere o clima de lá do que o do Brasil.
— Neve é bom.
Interpretação impossível: *chover neve é bom.
(30) Cientistas malucos' fazem chover neve no Aqui na Band6.
Como a interpretação de *chover neve é bom para o em (29) é impossível, embora esse seja um sintagma possível na língua, assumimos que os verbos meteorológicos não são licenciados como interpretações possíveis em sentenças panqueca em virtude de não terem um argumento externo. O que parece relevante é que o verbo seja de alguma forma compatível com um agente, ou seja, tenha uma estrutura transitiva ou inergativa, mas. Essa é a razão pela qual as leituras em (25) e (26) são possíveis, mas as leituras nos exemplos de (27) a (29) não. O exemplo em (31) reforça isso, já que um verbo inacusativo também não é licenciado como uma interpretação compatível com o evento em uma sentença panqueca.
(31) Júlia se mudou para o Chile, ela prefere o clima de lá do que o do Brasil.
— Neve é bom.
Interpretação impossível: *cair neve é bom.
Como dissemos também, a compatibilidade do verbo não é medida em termos de compatibilidade de c-seleção. Como os exemplos mostraram, o verbo não precisa selecionar o nome nu que aparece na (aparente) posição de sujeito de uma sentença panqueca (cf. discussão sobre os dados (25) e (26)). Para que a paráfrase com um dado verbo seja lícita, basta somente que ele denote uma atividade em que haja compatibilidade entre o verbo e o nome nu, independentemente da função sintática que esse nome nu tenha em relação ao verbo.
Em suma, até o momento as restrições estruturais que encontramos para que uma leitura seja possível com sentenças panquecas é a seguinte: o verbo deve ter um argumento externo, ou seja, ser transitivo ou inergativo.
Os contextos em (32) e (33) permitem refinar ainda mais a restrição que encontramos para a leitura de situação. Em (32) e (33), as leituras agramaticais envolvem verbos estativos.
(32) Mesmo não gostando do curso que escolheu fazer, João sempre vai para a faculdade, porque precisa do diploma, faculdade é complicado, por isso é preciso pensar bem antes de escolher um curso.
Leituras gramaticais: Fazer faculdade é complicado, ir para a faculdade é complicado.
Leitura agramatical: Odiar faculdade é complicado.
(33) Entre todos os animais existentes, o favorito da minha filha é a onça, por isso ela me pediu uma de estimação. Eu disse a ela: onça é complicado, porque você não pode criar uma onça em casa, se você gostasse de cachorro tudo seria mais fácil.
Leituras gramaticais: criar onça é complicado, ter uma onça é complicado.
Leitura agramatical: amar onça é complicado.
Em resumo, assumimos que haja uma estrutura verbal subjacente pouco especificada que licencia interpretações compatíveis com essa especificação mínima, enquanto proíbe leituras diferentes da especificação contida na estrutura. Embora não esteja muito claro para nós porque a interpretação de posse é licenciada (ver exemplo em (33), por exemplo)7, os verbos licenciados na leitura de situação são predominantemente agentivos. É importante ressaltar que essa já era uma ideia presente em Josefsson (2009) para o sueco. A autora assumiu que há uma série de verbos leves em sentenças panqueca na língua que poderiam ser nomeados como HAVE, GET, GIVE, PERCEIVE, TAKE, HOLD e PUT8.
No caso específico do PB, a abordagem de verbos leves se mantém, mas somente HAVE, para dar conta dos casos de posse que são possíveis, e DO parecem suficientes para darmos contas das paráfrases licenciadas.
1.3 Advérbios de VP
Além da questão dos verbos evocados na interpretação das sentenças panqueca, um outro aspecto que indica a presença de uma estrutura verbal como sujeito dessas sentenças copulares é o licenciamento de advérbios de VP. Se houvesse somente um nome nessa posição sem a presença de um predicador verbal, esperaríamos que advérbios de VP não fossem licenciados nessas sentenças.
Como veremos abaixo, não são todos os advérbios de VP testados que são licenciados como modificadores dos sujeitos das sentenças panqueca e, após o exame de alguns casos, procederemos a uma explicação de por que há essa variedade de licenciamento.
De forma geral, os exemplos nos mostram que há dois fatores principais influenciando no licenciamento de um advérbio: a posição do advérbio e a necessidade de ele se ancorar no significado do verbo.
O primeiro conjunto testado foi o dos elementos circunstanciais situados dentro do VP (cf. Cinque, 1999). Esses elementos podem aparecer em forma de PP, como na universidade e por três horas, ou em forma de DP, como todo dia. Teixeira (2015) afirma que esses advérbios não podem aparecer em posições pré-VP, exceto em posição inicial de tópico. Contudo, nas sentenças panquecas, eles são licenciados, como em (34) a (36).
(34) Quando Júlia estava no colégio ela odiava as aulas, mas aulas na universidade é divertido.
(35) Amanda quer ser professora porque ela gosta de crianças: Crianças todo dia é divertido.
(36) Eu até gosto de ir ao teatro, mas peça por três horas é chato.
O exemplo em (34), considerado isoladamente, não nos diz muito sobre a estrutura das sentenças panquecas, já que esse tipo de NP pode modificar tanto VPs quanto NPs: O João gosta d[[as aulas] na universidade] e O João gostar de [[comer] na universidade]. São os próximos dois exemplos que podem nos indicar a modificação de um VP. No exemplo em (35), a interpretação das sentenças nos indica que todo dia está modificando a predicação abstrata. A modificação todo dia não recai sobre divertido. Isto é, não é que as crianças são divertidas todo dia, mas sim eventos que incluem as crianças que são divertidos todo dia. Por exemplo, poder-se-ia ter a interpretação de que conviver com as crianças todo dia seja divertido. O mesmo se observa em (36), em que o PP temporal não poderia modificar uma entidade, somente um evento que possa se desenrolar por, no caso, três horas.
Há outros advérbios que podem ter ambiguidade de escopo, modificando nomes ou advérbios, como apenas em sentenças como: Apenas a garota folheou o livro (e não outra pessoa), a garota folheou apenas o livro (e não o leu), entre outras modificações possíveis (cf. Teixeira, 2015, p.84).
Nesse sentido, contextos específicos são necessários para mostrar que a modificação de apenas, em uma sentença panqueca, recai sobre o evento e não sobre o nome na posição de sujeito. Para esse fim, consideremos o exemplo em (37). Percebe-se que o apenas não é utilizado para restringir o nome igreja, mas serve como restrição ao número de eventos que se quer fazer em um dia só. João expressa que [apenas [ir]] à igreja já é suficiente. Nessa interpretação, apenas modifica a eventualidade, já que não se está, no contexto, restringindo entidades, mas eventualidades.
(37) Margarete: Vamos chamar o Pedro e a Maria para um churrasco e ir na festa da igreja.
João: É muita coisa para um domingo só. Apenas igreja já está bom.
Por outro lado, outros advérbios que também fazem uma modificação interna ao VP não são licenciados em sentenças panqueca, como bem e mal, exemplificados em (38).
(38) Contexto: Os cozinheiros estão tendo uma aula de gastronomia em uma cozinha. Os funcionários dizem que não cozinham a carne por muito tempo, mas o chefe diz que cozinhar a carne bem é essencial para que o prato fique saboroso.
a. *Carne bem é importante./ *Carne mal é perigoso.
b. Cozinhar carne bem é importante./ Cozinhar carne mal é perigoso.
Apesar de a posição desses advérbios não diferir muito dos anteriores explorados, a modificação em sentenças panqueca é agramatical. Acreditamos que isso se dá porque bem e mal dependem muito mais do significado da eventualidade do que de algum traço gramatical. Isto é, enquanto os elementos circunstanciais discutidos acima dependerão somente da presença de um evento, bem e mal combinam-se com qualquer tipo de verbo, aparentemente sem restrição, incluindo estativos (saber matemática bem/ saber mal matemática) e devem depender, então, de um conteúdo lexical do verbo, muito mais do que traços gramaticais, como os circunstanciais. Como defendemos que há, em sentenças panqueca, uma predicação abstrata que é compatível com uma grande gama de verbos, a razão para a má-formação das leituras em (38a) está ligada à dependência lexical desses advérbios.
Quando passamos a testar advérbios mais altos nas sentenças panqueca, temos também comportamentos diversos. Um advérbio como rapidamente ou sua contraparte sem sufixo, como rápido, estão fora do VP e não são licenciados em sentenças panqueca, como vemos em (39).
(39) Como eu tinha um compromisso, tive que preparar o almoço em 20 minutos.
*Comida rapidamente/rápido é complicado9.
Podemos interpretar esse fato de pelo menos duas maneiras: a) as sentenças panqueca têm uma estrutura truncada, que vai só até o VP; b) as camadas funcionais mais altas, como TP, nessas sentenças não têm traços relevantes para licenciar um elemento como rapidamente.
Imaginamos que a alternativa em (b) seja a correta, já que advérbios de ato de fala, mais altos do que TP, são licenciados em sentenças panqueca, como os exemplos em (40) e (41) mostram. Como os dados mostram, quando o advérbio de ato de fala recai sobre as sentenças em que contas e coxinha estão, a leitura é diferente de quando recai sobre a sentença em que o predicado adjetival está. Em (40), por exemplo, a leitura é de que o falante avalia situações envolvendo contas (pagá-las, arquivá-las ou algo assim) como chatas se o escopo de honestamente recair sobre a predicação abstrata. Se o advérbio honestamente recair sobre o predicado adjetival a avaliação do falante recai sobre chato. Ou seja, ele está sendo sincero sobre como avalia (se chata ou legal) essa atividade.
Isso ilustra, novamente, a presença de uma predicação abstrata do qual o small nominal em aparente posição de sujeito faz parte.
(40) A parte ruim de ser adulto é ter que pagar contas. Honestamente, contas é chato. / Contas é honestamente chato.
(41) Ao pensar no que vai colocar no cardápio de sua festa de aniversário, João escolhe pão de queijo, refrigerante, pipoca, batata frita, mas fica em dúvida se deve comprar coxinha ou não. Ele diz: Coxinha provavelmente é bom / Provavelmente coxinha é bom.
2. PSEUDOINCORPORAÇÃO DO SMALL NOMINAL EM SENTENÇAS PANQUECA
2.1 Small nominals e incorporação em sentenças panqueca
Até aqui, argumentamos a favor de uma estrutura verbal para as sentenças panqueca, com base na restrição de leituras de situação e suas consequentes paráfrases (seção 2.2) e no licenciamento de alguns advérbios (seção 2.3). Vimos também, com base em Rodrigues e Foltran (2015), que a estrutura das sentenças panqueca contém um small nominal, isto é, um constituinte menor do que um DP, que pode incluir alguns quantificadores e adjetivos baixos. Nesta seção, juntamos esses ingredientes para argumentar que o small nominal está pseudoincorporado nessas sentenças, o que, novamente, atesta a presença de uma estrutura verbal, visto que a pseudoincorporação geralmente envolve objetos.
2.2 Incorporação
Do ponto de vista nocional, a incorporação acontece quando dois elementos mantêm uma relação "mais íntima" do que se esperaria à primeira vista. No entanto, se tentarmos precisar o que é essa relação mais íntima, encontraremos diferenças significativas para diferentes autores. Para alguns autores como Mithun (1984), a incorporação é um fenômeno lexical (ou morfológico, se pensarmos que alguns fenômenos morfológicos acontecem no léxico); para outros, é um fenômeno sintático (Baker, 1988). Há ainda divergências quanto ao status do elemento incorporado. Ainda para Baker (1988), esse elemento incorporado é referencial em línguas polissintéticas, enquanto, na maioria das abordagens, a incorporação só pode acontecer com elementos não referenciais. Discutir em detalhes as diferenças dessas abordagens está fora do escopo deste texto, que tem o objetivo de mostrar que o small nominal das sentenças panquecas têm várias características de elementos incorporados ou pseudoincorporados. Para tanto, mostraremos como propriedades de sentenças panqueca ilustram, mais particularmente, as características de pseudoincorporação defendidas em Massam (2001).
Começaremos essa discussão com alguns exemplos ilustrativos de incorporação. Em (42a), temos um exemplo de incorporação nominal em onondaga. O nome dinheiro (hwist) forma um complexo com o verbo, em (42a), onde ele está incorporado, mas não em (42b), onde ele está independente. Como a tradução deixa evidente, a incorporação tem reflexos também na interpretação desse nome. Enquanto em (42a) a interpretação é de que Pat perdeu dinheiro de forma geral, em (42b) entende-se que ela perdeu um dinheiro específico.
(42) Onondaga
a.
| Pet | wa?-ha-hwist-ahtu-?t-a? |
| Pat | PAST-3MS-money-lost-CAUS-ASP |
'Patrícia perdeu dinheiro'
b.
| Pet | wa?-ha-htu-?t-a? | Ne? | o-hwist-a? |
| Pat | PAST-3MS/3N-lost-CAUS-ASP | the | PRE-money-SUF |
'Patrícia perdeu o dinheiro.'
Fonte: Baker (1988, p.77)
No entanto, as características de incorporação variam nas línguas para além da tipologia proposta por Mithun (1984). Massan (2001), discutindo dados do Niuenan, argumenta que essa língua se comporta de uma forma diferente em relação a alguns diagnósticos de incorporação e propõe testes para pseudoincorporação. Para entender as características de (pseudo)incorporação no Niuean, devemos considerar as sentenças em (43). Em (43a), observamos que a ordem canônica da sentença nessa língua é verbo–sujeito-objeto. Como Massan (2001) discute, essa é uma língua em que há fronteamento obrigatório do verbo, o que se reflete nessa ordem observada em (43a). O exemplo em (43b) já mostra a ordem da sentença quando há pseudoincorporação do objeto. Diferentemente de (43a), o objeto também se move para o início da sentença em (43b), gerando a ordem final: verbo-objeto-sujeito. Essa diferença de ordem entre (43a) e (43b) é também acompanhada de uma diferença morfossintática. Em (43a), o objeto está no plural, o que não acontece em (43b). Esses dados ainda ilustram que o objeto incorporado em Niuean não pode ter elementos funcionais prenominais, como é o caso do plural nessa língua.
(43) Niuean
a.
| Ko | e | fanogonogo | a | lautolu | ke he tau lologo. |
| Pres | listen | Abs | they | to | Pl songs |
'Eles estavam ouvindo música.'
b.
| Ko | e | fanogonogo | lologo | a lautolu. |
| Pres | listen | song | Abs | they |
'Eles estavam ouvindo música.'
Fonte: Massam (2001, p.171)
Embora esses exemplos pareçam somente mais variações dos casos de incorporação vistos anteriormente, os dados do Niuean apresentam uma novidade: alguns elementos funcionais são licenciados no objeto incorporado, mesmo quando esse objeto se move com o verbo. É o que observamos em (44). Nesse exemplo, o objeto possui duas características definitórias de pseudoincorporação para Massan: o objeto foi fronteado juntamente com o verbo e ele não possui elementos funcionais prenominais. Contudo, esse objeto carrega uma marca de coordenação (o comitativo mo), uma marca de caso (o absolutivo e), além do adjetivo posnominal mitaki (bom).
(44) Niuean
| Ne | kai | sipi | mo | e | ika | mitaki | a | Sione |
| Pst | eat | chip | Comtv | Abs | fish | good | Abs | Sione |
'Sione comeu peixe bom e batata'.
Fonte: Massam (2001, p.160)
Como Massan observa, um dado como (44) nos mostra que projeções máximas podem ser "incorporadas" nessa língua, mesmo que, em tese, só núcleos sejam passíveis de incorporação. Por diferirem significativamente de casos clássicos de incorporação, que envolvem somente um núcleo, Massam assume que objetos como esse sejam resultados de pseudoincorporação.
Com essa opção analítica em mente, podemos agora analisar os dados de sentenças panqueca e entender a relação entre a predicação abstrata e o nome que lhe serve de complemento. Os dados de sentenças panqueca permitem alguns adjetivos baixos, que são posnominais na língua, como vemos em (45), mas não adjetivos altos ou ainda exclusivamente prenominais, como os dados agramaticais em (46) mostram.
(45) a. Criança pequena é complicado.
b. Bola quadrada é caro.
c. Homem pobre é complicado.
(46) a. ?*Pobre homem é complicado.
b. *Mera flor é complicado.
Em todos os casos, como vimos, o NP é não especifico e não referencial, compatível não somente com a abordagem de Massan (2001), mas com a maioria das abordagens de incorporação. Assumindo que haja incorporação desse small nominal, fica clara não somente a exigência de um small nominal nessas sentenças, como várias das suas propriedades verbais, inclusive a leitura de evento, já largamente notada nas descrições iniciais dessa construção.
Enquanto uma análise de incorporação pode ser óbvia em línguas que não licenciam nomes nus em posições argumentais (ver Müller, 2021 para o dinamarquês), esse não é o caso do PB. Essa língua, diferente de outras línguas românicas, pode ter nomes nus na posição de sujeito. Ou seja, alguém poderia objetar em relação à nossa análise, defendendo que a leitura de evento venha de algum expediente semântico (cf. Martin et al, 2020), não necessariamente de um predicação abstrata presente na sintaxe.
Além da discussão desenvolvida na seção 2 ser muito sugestiva sobre a presença de uma predicação abstrata em sentenças panqueca, há um contraste claro entre nomes nus não incorporados e nomes nus incorporados no PB. Como a breve comparação abaixo mostra, nomes nus não incorporados possuem propriedades diferentes dos small nominals — grupo de nominais sem D, dos quais nomes nus fazem parte — aqui analisados como pseudoincorporados em sentenças panquecas. Isso se dá porque, embora, em alguns casos, possamos dizer que nomes nus incorporados e não incorporados possuem a mesma estrutura em termos de projeções nominais, o nome nu na posição de sujeito em sentenças genéricas não está incorporado, enquanto um nome nu na posição de predicação abstrata na sentença panqueca está. Os contrastes que vemos nos exemplos abaixo se devem, precisamente, a essa diferença.
Uma diferença de comportamento entre nomes nus em posição de sujeito e nomes nus em sentenças panqueca tem a ver com a especificação do tempo da sentença. Como já amplamente discutido na literatura, os nomes nus em posição de sujeito no PB são comumente licenciados em sentenças genéricas (Müller, 2001, et seq). Quando são licenciados em sentenças com passado especificado, outros expedientes devem ser usados, como foco e contraste (Menuzzi, Figueiredo e Doetjes, 2015). Essas propriedades são exemplificadas em (47a) e (47b), respectivamente.
(47) a. Criança gosta de doce.
b. ?*Criança gostou de doce, adolescente gostou de refrigerante na festa ontem.
Em contraste, os small nominals em sentenças panqueca podem aparecer em sentenças com tempo especificado. Isso acontece porque eles estão no domínio da predicação abstrata e, portanto, não estão na posição de sujeito em relação ao verbo auxiliar da sentença.
(48) Criança foi complicado na festa.
Para que o contraste fique claro, podemos considerar as sentenças copulares com concordância de gênero como os exemplos (49) e (50). Sentenças com nomes nus na posição de sujeito em que não há desacordo morfossintático entre o sujeito e o predicado são agramaticais no tempo passado, sem a adição de fatores que induzam a uma leitura de contraste ou foco, como (49) e (50) mostram.
(49) *Criança foi complicada em festa.
(50) Criança é complicada em festa.
Essas diferenças mostram que, embora os nomes nus em PB e nas sentenças panquecas tenham possivelmente a mesma estrutura sintática (ausência de uma camada D), a pseudoincorporação dos small nominals em sentenças panqueca explica sua distribuição diferente em relação ao tempo da sentença. Essa diferença seria misteriosa se não assumíssemos que há, no sujeito de sentenças panqueca, uma predicação abstrata.
3. CONCLUSÃO
Neste trabalho, analisamos duas propriedades interrelacionadas de sentenças panqueca, quais sejam, a presença de um small nominal em uma aparente posição de sujeito e a leitura eventiva. Com base na adaptação de testes sobre sentenças panqueca em línguas escandinavas, como o sueco e o dinamarquês, argumentamos que as sentenças panqueca no PB possuem uma predicação abstrata, tal como defendido por Josefsson (2009), e que o small nominal em uma aparente posição de sujeito é, na verdade, um objeto pseudoincorporado, tal como defendido por Müller (2021) para o dinamarquês. A análise de pseudoincorporação permite distinguir os small nominals de sentenças panqueca de sentenças genéricas com nomes nus do PB em posição de sujeito, que não são incorporados, além de mostrar semelhanças entre sentenças panqueca de línguas não aparentadas, como as línguas escandinavas, de lado, e o PB, de outro.